Calor que não se mede nessa última sexta-feira do ano.
O ventilador tenta bravamente espalhar o mormaço que se forma na minha nuca, que escorre pelas minhas costas, que convida os pernilongos pra dentro, que me impede de dormir e me tira, igualmente, a vontade de acordar.
Olhando pro teto, sozinha no quarto, me lembro desse ano que está às vésperas de terminar.
Muitos contando os minutos.
Muitos dizendo de seus horrores.
Pra mim, ele não foi tão mal assim.
Não ignoro as tristezas do mundo e nem as dores que me visitaram nesses 363 dias e algumas horas, mas tirei deles uma grande e real lição: a de como quero permanecer inútil!
Há tempos assisti um vídeo do Padre Fábio de Melo em que ele falava da inutilidade do amor. Pedia a Deus que ele pudesse ter a seu lado pessoas que o quisessem por perto quando ele fosse absolutamente inútil e nada de produtivo lhe restasse mais. Ali se revelariam os que realmente lhe amavam, os que realmente lhe queriam bem.
Eu não atingi esse estágio de inutilidade, mas já fui bem mais útil do que me apresentei este ano.
Sempre optei pela via contrária: por não conseguir cativar (ou não me ver como capaz disso) me fazia extremamente útil, necessária, indispensável.
Antes que o outro pensasse, cá estava eu com a solução.
Antes que me perguntassem, cá estava eu com a resposta.
Limites? Desconhecia.
Vontades próprias? Não merecia.
E assim me fiz nesses 20 e muitos anos servil, necessária, prestativa, utilitária.
Assim me fiz nesses 20 e muitos anos: absolutamente substituível.
As coisas se prestam a um fim.
As coisas se trocam.
As coisas não questionam e não tem limites ao que fazem dela.
As coisas estão ali, lhe servem e isso basta.
E assim eu me fiz nesses 20 e muitos anos: coisa, útil, simples assim.
No passar deste ano, tive de viver um de meus maiores temores: não pude mais ser tão útil. Nada ou quase nada tinha a oferecer.
Tempo? Quase não tive: as horas de trabalho multiplicaram... o deslocamento ao trabalho aumentou também...
Dinheiro? Quase não tive: as prestações me sufocaram... o aumento prometido, não veio também...
Bom humor? Quase não tive: as preocupações me inundaram... as ansiedades e problemas me acompanharam também...
Ver-se inútil não é fácil... é triste... pesa... dói.
Ver-se inútil é necessário... liberta... seleciona... constrói.
Muitos que me procuravam, não me procuraram mais...
Muitos a quem dei a resposta mesmo antes da pergunta surgir, foram incapazes de ver as dúvidas que eu exalava em minhas reclamações, meus desabafos, meus sofrimentos solitários....
Muitos que eu não esperava, me estenderam os braços e conseguiram entender na distância aparente, os problemas evidentes e, mesmo em silêncio, me ofertaram uma prece, uma ajuda, um tempo, um telefonema, um ouvido.
É isso o que desejo nesse novo ano: Inutilidade.
Àqueles que respondi negativamente nos pedidos de ajuda e que não se lembraram de mim em seus momentos de celebração: que tenham um ano de 2017 tão inútil como o meu! Isso não é vingança, não pense assim. Quero que você também tenha a chance de me ver além de minha utilidade aparente e que em algum local resida a saudade do que eu sou e possamos nos reencontrar para celebrar a essência de sermos o que somos e isso bastar.
Àqueles que eu não mais procurei por serem inúteis a mim: que tenham um ano de 2017 mais inútil ainda! Me perdoem a pequenez do sentimento e é com vergonha e pesar que constato a fungibilidade que fiz de vocês, pessoas que são. Não os procurarei mais enquanto forem úteis a mim, espero que a minha inutilidade me revele a essência do que eu não enxerguei em vocês também.
Àqueles que se lembraram e permaneceram comigo: que possamos permanecer inúteis em 2017! Desejo a nós muitas horas de conversas absolutamente infrutíferas, risadas infinitas com lágrimas desperdiçadas gratuitamente, desabafos sinceros e acolhedores por horas e horas entre abraços improdutivos e consolos amorosamente improfícuos.
Um inútil ano novo a todos!
Escrever é preciso, Viver não é preciso
Diário de uma mente secreta que pra se entender (ou reconhecer) precisa ler-se
sexta-feira, 30 de dezembro de 2016
sexta-feira, 14 de outubro de 2016
PORÃO
Todo o chão se abre
No escuro, se acostuma
Às vezes a coragem é como quando a nova lua
Somos a discórdia
E o perdão
E nos esquecemos da cor que tinha o céu, assim
Como a saudade
Ou uma frase perdida
Durma, Medo Meu
Hmmm, não
Às vezes um "não sei"
Janela, madrugada, luz tardia
E o medo nos acorda
Para e bate o coração
Em pura disritmia
O medo amedronta o medo
Vela, madrugada, dia, assim
Como a saudade
Ou uma frase perdida
Durma, Medo Meu
Durma, Medo Meu – O teatro mágico
No escuro, se acostuma
Às vezes a coragem é como quando a nova lua
Somos a discórdia
E o perdão
E nos esquecemos da cor que tinha o céu, assim
Como a saudade
Ou uma frase perdida
Durma, Medo Meu
Hmmm, não
Às vezes um "não sei"
Janela, madrugada, luz tardia
E o medo nos acorda
Para e bate o coração
Em pura disritmia
O medo amedronta o medo
Vela, madrugada, dia, assim
Como a saudade
Ou uma frase perdida
Durma, Medo Meu
Durma, Medo Meu – O teatro mágico
Está frio... Está frio e silencioso...
O mundo é um grande porão, poeirento,
abandonado, escuro, isolado, habitado por fantasmas, pesadelos, sombras de
monstros que escalam as paredes e entram pelas janelas.
Eu, criança perdida, olho a tudo com
olhar estatelado de quem enxerga, mas não compreende a realidade que a cerca. De
caixas vazias surgem monstros, os barulhos são gritos e as tralhas envoltas em
sombras alimentam os temores da mente, se projetando em forma de seres que a
infância teme e só me convidam a fugir.
O medo pede fuga, distância, socorro.
Se teme o que não se conhece, o que não se compreende, o que não se explica e
nem se entende, o que não cabe em minha mente limitada e fechada.
Hoje tenho medos. Medos duas
naturezas. Medo por não poder saber e medo por saber demais.
Tenho medo desse mundo que não permite
a pergunta, que não admite a dúvida, o questionamento, a informação simples,
sem crítica, sem opinião, sem achismos ou desachismos, dedos em riste, volumes
de voz exaltados, placas e protestos.
Tenho medo por não poder mais me
informar antes de opinar, por não encontrar informação. Tenho medo, pois não
posso mais procurar saber sem ser colocada em cima de um muro que construíram
nessa democracia agressiva do Fla X Flu, que distancia a família, esvazia as
mesas de boteco, que se ergue entre os amigos e afasta os abraços e os
sorrisos. Tenho medo, pois não encontro mais o “saber” que vem apenas temperado
de pimenta, inflamado, cheirando a valores subliminares e entendimentos
particulares. Tenho medo dessa ditadura do protesto imediato e da perda do meu
direito de querer apenas saber antes de vomitar o que penso. Não pode! Não tá
certo! Pode sim! Tá tudo como deveria
estar! Ela não presta, nada que presta vem dela! Ele não presta, nada que
presta vem dele!
Tenho medo por ser uma “Poliana” nesse
porão frio que o mundo se fez, por ainda querer crer que nada pode ser de todo
ruim, ou de todo bom, só por estar sob determinada bandeira, sob determinado
nome, sob determinada cor.
Tenho medo de me perder nisso e
despertar a ira que acumulo por problemas meus lançando-a na fogueira dos
problemas coletivos e inflamando um incêndio que eu não posso controlar. Isso
por não poder simplesmente saber... por não ter como saber... por não ter meios
de me informar... por ter que me questionar em silêncio e não encontrar quem
queira ouvir das dúvidas que tenho sem questionar que camisa uso, que time
defendo, em quem votei ou não.
A liberdade defendida é bandeira
obrigatória e não se pode questionar... Luta! Protesta! Não lê! Não discute!
Assume! Tá contra? Tá a favor? Desce daí menina!
E de cima do meu muro enxergo a tudo
chocada e cansada, trazendo em mim ainda o medo de saber demais.
Vejo o mundo à minha volta com os
olhos deseducados de quem se julga certa, moral, adequada. Vejo e critico.
Classifico, seleciono, opino, etiqueto. Antes de ver, já tenho uma opinião que
enquadra o outro e o limita à minha perspectiva de viver, de ver, de ser.
Meu olhar a tudo comporta e conforma
nas prateleiras de meus conceitos pré-constituídos do que pode ou não pode ser.
Sei demais da vida, sei demais do viver, sei o que cada um deveria ou não estar
fazendo e isso me sufoca de uma insatisfação, que na verdade é por talvez não
me ver fazendo tudo aquilo que poderia ou deveria fazer.
Estou sozinha nesse porão repleta de
conceitos que carrego e que nas sombras da noite se fizeram monstros e me
impedem de prosseguir ou de enxergar mais além. Acumulo tralhas em traumas que
conformam a realidade à maneira que me ensinaram a enxergar.
Talvez o desejo de querer saber mais
antes de opinar venha dessa solidão que as caixas em meu sótão trouxeram:
entulhadas me afastam da verdade do outro que se mostra a mim como é e não como
eu gostaria de vê-lo. Conceitos que vejo gritando nas falas alheias gritam em
minha mente no meu Fla x Flu, no meu muro, na minha ditadura solitária de um
viver repleto de preconceitos que, a bem da verdade, nem sei mesmo se são meus,
se quis segui-los ou como é que vieram parar aqui.
Medo que me chama à fuga todo dia,
espera um minuto. Dorme um pouco. Aquieta. Deixa eu ver o que esse porão
esconde. Deixa eu ver o que tem aqui e o eu que posso aproveitar. Nem tudo isso
é tralha. Nem tudo é só poeira. Nem tudo está certo, mas nem tudo está errado
também. Mas eu tenho o direito de saber e de poder escolher quais dessas caixas
e monstros eu preciso e quero defender e carregar.
quarta-feira, 21 de setembro de 2016
COLO
Colo
Mãe, quando é que a gente vira adulto?
Quem me diz que eu já sou adulta?
Então, me fala, quando é eu vou me sentir assim?
Eu olho pra minha data de nascimento e, segundo ela, eu já deveria ser adulta.
Eu olho pro meu cachorro quando chego do trabalho e ele me cumprimenta em busca de ração e seu olhar me diz que eu deveria ser adulta.
Eu olho a pilha de contas na mesa de minha sala, gritando meu nome, roubando meu saldo disponível para saque, pesando em meus bolsos e elas me cobram como se cobraria a um adulto.
Eu deito em meu sofá e ligo o telejornal e engulo notícias mais tristes que meus problemas e o cheiro delas e a minha indiferença me atestam como se eu fosse adulta.
Mas eu sou?
Eu não me vejo assim... apesar das dores nas costas que me chegam quando fico em pé por muito tempo em festas que antes atravessava sem dor, com salto alto e sem ter a menor noção das horas.
Eu não me sinto assim... apesar do garoto ter me chamado de senhora e me olhado com olhar vago quando mencionei a propaganda de um certo chocolate que ia à praia – ainda não consigo acreditar que ele não conhece o Milkbar! Não, não me venha com Lollo! Lollo não vai à praia como dizia o jingle do bom e velho Milkbar.... milkbar...milkbar...
Eu não me percebo assim... apesar de já estar fazendo check-up anualmente e ver o valor do plano de saúde subir e o do seguro de automóvel cair...
Deus... eu tenho seguro de automóvel!
Deus... a gerente do banco acha que eu sou responsável!
Deus... as atendentes de telemarketing me procuram como se eu respondesse por mim!
Mãe, me fala! Quando que passa essa vontade de deitar no seu colo e dormir até o outro dia?
Quando que vai passar essa insegurança toda vez que eu preciso decidir minhas rotas e ainda me pego pensando como seria bom ter a assinatura com o aval de um responsável?
Quando eu vou me sentir como senhora do meu destino com a mesma certeza que eu sentia partir de você quando te via saindo pro trabalho e chegando infinitas horas depois?
Me fala, mãe?
Por hoje, eu só queria deitar no sofá da sua casa e escutar o barulho tranquilo do feijão cozinhando e sua sinfonia de panelas e talheres, enquanto você cantarolava alguma MPB na cozinha.
Por hoje, eu só queria que minha única preocupação fosse o boletim, o namorico no pátio durante o recreio, o caderno de respostas da amiga, o desenho da TV que eu perdi, a festa do final de semana.
Por hoje, eu só queria te ver chegar pela sala ralhando comigo pela irresponsabilidade, pelo para-casa que eu não fiz, pela bagunça do meu quarto, pela minha mochila jogada que não tem perna e por isso não vai sair da sala sozinha.
Me coloca no seu colo mãe, que eu não cresci.
Na verdade, nem sei se algum dia eu vou mesmo crescer.
sexta-feira, 9 de setembro de 2016
TUDO BEM, TAMBÉM!
“Quando ascendes a
teu Céu, eu desço ao meu Inferno - mesmo então chamas-me através do abismo
intransponível, "Meu Amigo, Meu Companheiro, Meu Camarada", e eu te
respondo: "Meu Amigo, Meu Companheiro, Meu Camarada" - porque não
gostaria que visses meu Inferno. A chama queimaria teus olhos, e a fumaça
encheria tuas narinas. E amo demais meu Inferno para querer que o visites.
Prefiro ficar sozinho no Inferno.
Amas a Verdade, e a
Beleza, e a Retidão. E eu, por tua causa, digo que é bom e decente amar essas
coisas. Mas, no meu coração rio-me de teu amor. Mas não gostaria que visses meu
riso. Gostaria de rir sozinho.
Meu Amigo, tu és bom
e cauteloso e sábio. Tu és perfeito - e eu também, falo contigo sábia e
cautelosamente. E, entretanto, sou louco. Porém
mascaro minha loucura. Prefiro ser louco sozinho: Meu Amigo, tu não és meu Amigo, mas como te farei compreender?
mascaro minha loucura. Prefiro ser louco sozinho: Meu Amigo, tu não és meu Amigo, mas como te farei compreender?
Meu caminho não é o
teu caminho.
Contudo juntos
marchamos, de mãos dadas.”
Khalil Gibran
-
Ei! Como você tá?
- Tô
bem e com você?
- ...
Eu? Eu,
não.
Eu tô
cansada.
Perdida.
Confusa.
Sozinha.
Não
tô bem.
Não
sei quem estaria.
Não
entendo como você também pode estar.
Eu
vejo seu rosto com esse sorriso polido, seu abraço frouxo que alisa minhas
costas, seu perfume adequado que me abraça as narinas, seu peso correto que me
afronta as dimensões que eu não aceito...
Não
tô nada bem e como você pode estar?
Eu
vejo o mundo em minha volta e não me encontro.
Não
me querem aqui e nem em lugar nenhum. Não sentem minha falta e acho que nunca
sentiriam... Nem mesmo se... Não! Nem nisso posso pensar, pois meu pensar é
pecado, meu cogitar é profano, é tabu, é pra ser escondido nesse entulho que
fiz da minha vida, naquele baú onde amontoei as minhas dores e que não posso
abrir, pois quem vai me ajudar a arrumar?
Sou
mãe e não queria ter sido – não diz isso é pecado!
Sou
pai e não queria ter sido – não diz isso é pecado!
Sou
mulher e não conheço meu corpo, tenho curiosidades, desejos e não posso
confessar – fecha a perna, senta como moça!
Sou
homem e escondo o choro e a dor que não posso confessar - vira homem, rapaz!
Sou
filha e não gosto dos pais que tenho – deixa de ser ingrata menina!
Sou
filho e não gosto dos irmãos que tenho – deixa de ser ingrato menino!
Sou
pessoa que pesa mais que o que dizem ser devido e não consigo me conformar à
forma que querem me ver – deixa de ser preguiçoso!
Sou
pessoa e peso menos do que devia e não consigo ter as curvas com que querem me
pegar – para de reclamar atoa!
Ditam-me
e dizem-me o que fazer o que não fazer, mas não me ouvem.
Choro
sozinho.
Sofro
sozinho.
Nunca
me ouvem.
Quando
ouvem já têm discursos, receitas, propostas, mas não têm ouvidos.
Querem
me convencer, me converter, me salvar, mas não têm ouvidos.
Eu não
estou bem, não tô nada bem.
Eu
me vejo nas manchetes das páginas policiais.
Eu
me vejo na dor dos que pedem na rua.
Eu
me vejo nos filmes tristes e comerciais de fim de ano.
Eu
me vejo nos cachorros que vagam sem dono, sem ração, sem colo, sem nada.
Eu
sou pior que eles, pois minha dor não tem justificativa, pois eu tenho tudo,
não é?
Eu
reclamo de barriga cheia, não é?
Eu
sou abençoado, não é?
Não
é? NÃO É?
NÃO!
NÃO
É!
Eu
não tô bem, não to nada bem!
Mas
não se preocupe.
Não
vou atrapalhar seu dia.
Vou
seguir o protocolo que a boa educação determina.
Você
vai terminar seu abraço polido e eu já terei armado o meu melhor e mais falso
sorriso.
A
maquiagem esconde as minhas olheiras e você não saberá de meu choro insone
dessa madrugada que, para mim, foi eterna e aterrorizante. Eu vou acenar
levemente a cabeça e dizer o que quer ouvir.
-
Tudo bem, também!
Pronto,
você está livre. Pode ir. Pode se sentar na sua mesa, pode seguir com a sua
vida, pode me falar de suas amenidades, suas piadas, pode desligar o telefone,
pode sair do whastapp, pode ir.
Eu?
Eu vou ficar aqui mesmo. Não tenho para onde ir. Não posso fugir de mim. Não tenho
liberdade e nem lugar seguro.
Eu
vou me consumir nesse inferno eterno que é viver comigo e nessa dor que você
não entende e que não quer entender, porque ela não te pertence.
Vai
que tá tudo bem!
Tá tudo ótimo!
Bom dia para você também!
terça-feira, 23 de agosto de 2016
Calçada
“You've
got to learn to hide your sorrow and go on living as before
But
good is thinking of tomorrow
Who
knows what it may have been stored?
You've
got to learn to be much stronger the times your head must rule your heart
You've
got to learn from hard experience and lead some to advice
And
sometimes bear the price and learn to live with a broken hear”[1]Nina
Simone
Tem uma mulher deitada na
calçada.
Tem uma mulher deitada, morta na
calçada.
Tem uma mulher, mãe, irmã, tia, filha,
amiga, servidora, deitada, morta na calçada.
Os homens passaram de moto e
deixaram a mulher ali: morta, deitada da na calçada.
Os homens deixaram a mulher ali
na calçada, mas e o destino que eles criaram, quem vai levar? Os filhos que
viraram órfãos, a irmã que perdeu a companheira, a mãe que perdeu o sentido, a
amiga que não tem para quem ligar, esses destinos, quem vai levar?
O que eu digo aos meninos que
esperam a mãe de volta? O que eu digo a eles? E eu digo de quem suspeitam? E se
eu não disser, será que diminui a dor? Será que muda a realidade da dor? Será
que eles não vão unir os telefonemas agressivos, o choro sufocado da mãe, a
mudança repentina para casa da avó, como a trilha que leva ao culpado? O que
eles vão contar na escola aos colegas? O que vão contar aos filhos deles sobre
a história da avó que eles não poderão conhecer?
O que eu digo à irmã que a
recebeu em casa? O que eu digo a ela? Ela sabia do que acontecia e recebeu a
mulher em casa, abriu as portas e a vida para que ela tivesse abrigo à violência
que deveria estar porta a fora, mas isso não adiantou, e agora? A quem ela deve
recorrer? À lei que leva por nome uma mulher mártir deficiente pela deficiência
do Estado que acha que pode resolver tudo? Um Estado que só olhou para a mártir
e agora só olha para a mulher da calçada por que o sangue e a revolta se
tornaram visíveis? A quem ela deve procurar? A quem recorrer? Quem vai
consolar?
O que eu digo à sua mãe que já
passou por uma vida de abusos, como todas passaram, e agora tem que encarar a
realidade do que é tapado com peneira na figura da filha deitada na calçada? Eu
digo que os tempos mudaram? Que progredimos? Que machismo “dá cadeia”? Que a
mulher tem mais direitos? Que tem o dia dela? Você teria coragem de dizer isso
diante da evidente ineficiência de qualquer prédica, já que a prática cotidiana
ainda é assassinar quem não quer seguir mais como você dita? Que “ta certo”
dizer que aquela que chora é criança, é infantil, é louca? Que a outra anda com
roupa curta é puta, não tem postura de mulher e está pedindo? Diante da rotina
que cega os homens dos serviços domésticos por que foram criados assim e tudo
bem, isso não é nada, “amanhã é minha vez, querida”? Mas quando vai chegar o
amanhã com sua vez de ser julgado, com a sua vez de ser abusado, com a sua vez
de ser assassinado?
A
mulher está lá na calçada. Ela era mãe, era irmã, era tia, era amiga, mas ela agora
é estatística. A estatística se perde no tempo, no esquecimento, nos números,
nos prazos, nas prescrições, nas “data vênias”, nos processos, nos “excelentíssimos”,
“meretíssimos”, nos carimbos, na frieza do mundo.
Mas
nada disso apaga a dor.
Nada
disso consola.
Nada
disso socorre.
Nada
disso resolve.
A
mulher ainda está na calçada.
Nada
que eu escreva ou diga vai mudar isso, vai diminuir em uma lágrima essa dor.
Mas
eu quero que ela saiba que ela não está sozinha na calçada: estamos todas nós.
Silenciaram
a mulher, mas a mim ainda não silenciaram e enquanto assim for eu digo, eu
choro, eu grito e enlouqueço: NÃO PASSARÃO!
[1]
Você tem de aprender a esconder sua
tristeza e continuar vivendo como antes/Mas é bom pensar no amanhã/Quem sabe o
que pode ter sido guardado?/Você tem de aprender a ser muito mais forte nos
tempos em que sua cabeça deve governar o seu coração/Você tem de aprender com
as experiências difíceis e levar algumas para conselhos/E às vezes suportar o
preço e aprender a viver com o coração partido
segunda-feira, 1 de agosto de 2016
Febre
Febre
Me
diagnosticaram, é “pleumonia”! Aguda! Grave mesmo, me corroendo por dentro...
Pediram “raoxis” e tudo...
Mas quando
estava no consultório, vi que o “Dotô” também não estava bem. Ele tava com os
olhos casados, me olhava com pesar, não por mim, mas pela vida dele mesmo...
Ele não tava com muita paciência... Eu com minha “Pleumonia” e ele com intolerância.
Depois que
saí de lá, me vi estampado em jornais, em páginas, em fotos, com pessoas que
não me conhecem e nem conhecem o “dotô”. Eu vi que xingavam o “dotô”, xingavam
muito, xingavam feio! Vi que eles também estavam todos doentes, eu com minha
pleumonia, o dotô com intolerância e meus defensores com a ignorância deles.
Eu vi que
tinha uma moça que me defendeu de um jeito educado. Sem me chamar de burro e
nem chamar o “dotô” de desgraçado, sem ameaça, mas de um jeito leve. Mas vieram
os defensores do “dotô”. Disseram que ela era macaca que fingia de branca por
pintar o cabelo de loiro e que oprimia os pacientes por usar “estetoscrópio”
vermelho. Eu vi nos olhos deles que eles estavam doentes. Tinham os mesmos
sintomas do dotô e dos meus defensores. Nossa senhora! Isso passa rápido hein?
Tenho que me vacinar!
Doentes que
se atracam, se batem, se machucam. Eles não querem se ouvir, só querem falar,
gritar, agredir, se impor, calar... Acho que o caso é grave... agudo... não tem
“raoxis” que resolva.
No fim das
contas, minha “pleumonia” é o mais leve nisso tudo. Eu só sinto uma febre que
acaba com novalgina e a tosse passa com chá, mas essa ignorância e essa
intolerância não passam.
Elas corroem
a gente por dentro onde nenhum “raoxis” consegue ver. Não gera tosse, nem febre
que termômetro consiga perceber. Mas queima, por dentro, por fora, por todo
lado. Ela expulsa pra fora da gente o lixo que a gente carrega dentro. Ela faz
gente virar bicho. Faz eu deixar de ver o outro como alguém além do ponto de
divergência entre a gente. Eu enxergo o que discordo e pronto.
É grave essa
doença porque não tem remédio nenhum que dê jeito na gente, nada que se possa
tomar de fora pra acalmar esse fogo que queima por dentro... O remédio é de
dentro também, mas ninguém quer tomar, por que ninguém quer ceder, tem que
ganhar... ganhar o quê eu não sei, por que no fim das contas sai todo mundo
perdendo. Perde amigo, perde emprego, perde espaço e depois pede pra fazer
retratação, pra remendar o que disse, pra dizer que não era bem assim, que
falou sem pensar, que colocaram mais peso, que era só uma piada, que não
linchou ninguém, que é só internet, que tem direito de se expressar, que o
mundo tá muito chato, que tem muito mimimi....
No fim das
contas, eu, a minha “pleumonia”, a intolerância do “dotô” e a defesa da outra
“dotora” ficamos tão pequenos nesse mar de agressões que eu nem tenho mais pra
onde correr ou como me esconder.
Quem bate no
“dotô” fala que apanha e fala em meu nome sem me perguntar se eu quero defesa,
sem ver que é tão ignorante como o dotô que riu da minha “pleumonia”.
Quem bate na
“dotora” fala que apanha e que o mundo anda muito chato, ignorando os sintomas
de racismo galopante que estão acabando com eles mesmos, contaminando seus
filhos e quem mais estiver passando próximo...
Sei não, viu!
Eu tô esperando o resultado dos meus exames e tô com medo. Medo desse mundo
todo que bate sem perguntar, que opina nem se questionar, que acha que agredir
é se posicionar, que acha que tem crachá de moralidade e que isso o isenta em
qualquer atitude, já que eles podem e não só podem como devem defender o que
acreditam... Mas nem sabem no que acreditam, ou mesmo se acreditam....
Só sei que
está todo mundo doente, tá todo mundo com uma tosse na garganta que incomoda e
que se não vigiada sai na forma de escarro na cara de quem tá passando do seu lado. Tá
todo mundo com uma febre que queima o peito e tira o sentimento de humanidade,
que agride, humilha o outro e não se importa com o ser humano que tem que
continuar vivendo apesar do erro que fez ou da opinião que eu não concordo. Tá
todo mundo cansado, de peito cheio, testa quente, todos com suas “pleumonias”.
Mas ninguém tem coragem de abrir seu envelope e conferir o próprio “raôxis,
porque ninguém quer ver onde tá errado, onde tá o sintoma, onde tem que
melhorar. Só querem cuspir, tossir, se inflamar. Ninguém quer se ouvir. Tá todo
mundo doente, mas ninguém quer se curar.
terça-feira, 19 de julho de 2016
A culpa é toda nossa!
A culpa é toda nossa!
Querido “çer
umano” que estacionou seu HB20 atrás da minha moto ontem naquele bairro da Zona
Sul, em frente ao prédio da minha terapeuta.
Querido “çer
umano” que tinha um adesivo “A culpa não é minha, eu votei no Aécio” pregado em
seu carro.
Querido “çer
umano” que, ao manobrar seu carro caro, derrubou minha moto barata, quebrou a
manete de freio, entortou meu retrovisor e arranhou a lataria, além de deixá-la
um pouco aberta.
Querido “çer
umano” que levantou a minha moto e a deixou em pé como se nada tivesse
acontecido e foi pra sua casa com a consciência serena já que você votou no
Aécio.
Querido “çer
umano”, deixa eu te falar uma coisa: A CULPA É SUA! Não por que votou nesse
cara aí. Não tô nem aí em quem você votou. Seu voto é sua manifestação de
liberdade democrática e eu defendo a democracia. Se você quis violar o segredo
do seu voto com esse adesivo no seu carro sem arranhões, com freio adequado, retrovisores
no lugar certo e lataria em perfeito estado isso é problema seu! Não me importo
nem um pouco com isso!
Mas eu me
importo com a sua hipocrisia, ainda mais quando ela vai afetar diretamente no
meu bolso!
Você é um
político corrupto e ladrão!
É sim!
Só que você
não foi eleito por ninguém, ninguém votou em você!
Você é
político porque faz “politicagem”. Anda por aí como probo, justo e sem culpa
nenhuma nessa bagunça que está o país, enquanto derruba a minha moto e sai como
se nada tivesse acontecido.
Você é
corrupto por que não assumiu a responsabilidade por um ato que fez e que
deveria arcar com o prejuízo. Estava com pressa? Deixasse um bilhete no visor
da moto! Avisasse ao rapaz da padaria de frente que viu sua ação e me contou!
Sim, você foi visto e foi alvo de delação premiada! O problema é que você não vai
muito ali, pelo que parece, então não vou poder te conduzir coercitivamente
para a delegacia e fazê-lo pagar pelo que fez.
Você é ladrão,
pois roubou diretamente de mim! Você sabe da minha condição financeira? Sabe
quanto custa a manete de freio? Sabe quanto custa consertar a lataria da minha
moto? Mas eu sei que o valor da minha moto não paga nem o valor de entrada
desse seu HB20 e aposto como você deve ter até seguro para danos a terceiros!
Querido “çer
umano”, fosse eu a arranhar a traseira desse seu carro ou a esbarrar nesse seu retrovisor
e aposto como você desceria enfurecido a me xingar sem nem esperar que eu
arcasse com o prejuízo, por que eu iria arcar sim!
Saiba, querido
“çer umano”, que eu também sou uma política corrupta e ladra, pois também tenho
os meus desvios que não queria mais ter. Também me aproprio do que não é meu.
Também tenho os meus “jeitinhos” e sei que isso é errado.
Mas fique
sabendo, querido “çer umano”, que eu tenho ao menos consciência disso e sei, ao
menos em alguma medida, que A CULPA TAMBÉM É MINHA, não por quem eu votei ou
deixei de votar, mas por ser quem eu ainda sou e não me eximo dela! Mas pelo
menos não coloco na testa, no carro ou na moto um adesivo de moralidade que eu
não possuo. Assumo a minha responsabilidade e reconheço quem sou.
E antes que
você tente virar isso para os polos coxinha x mortadela, golpe x impeachment,
direita x esquerda, querido “çer umano”, o que me indignou não foi seu voto,
seu posicionamento político, a coxinha ou a mortadela de qualquer um. Repito,
não estou nem aí para isso! Vote em quem quiser! Defenda democraticamente o que
quiser! Mas não se exima da culpa que também é sua!
Seja honesto
ou se esforce pra ser! Não “tire o seu da reta” quando lhe convém. Com esse
prejuízo que me deu, você desviou verba do meu “SUS”, da minha “educação”, do
meu “PIB”, por que eu tenho que arcar com um prejuízo que eu não produzi e dar
as minhas pedaladas em meu orçamento para cobrir esse dano seu!
E não pense
que eu estou “tirando o meu da reta”! Saiba que eu assumo a corrupção que eu
pratico, justamente para não fazê-la mais! Justamente por que ela me incomoda!
Justamente por que sei que não posso me eximir dessa culpa que também é minha.
Então, querido
“çer umano”, de duas uma: ou tire esse adesivo hipócrita e continue derrubando
motos por aí e fugindo de seus compromissos com o próximo sabendo que a culpa é
sua, ou continue com seu adesivo, mas pare de dar desculpas e seja
verdadeiramente honesto!
Não me
importo com o que vai escolher, mas escolha ser verdadeiro com o que de fato é
ou com o ideal do quer ser. Mas seja, querido “çer umano”, ao menos humano. Ou
tente ser!
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