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sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Inútil ano novo!

Calor que não se mede nessa última sexta-feira do ano.
O ventilador tenta bravamente espalhar o mormaço que se forma na minha nuca, que escorre pelas minhas costas, que convida os pernilongos pra dentro, que me impede de dormir e me tira, igualmente, a vontade de acordar.
Olhando pro teto, sozinha no quarto, me lembro desse ano que está às vésperas de terminar.
Muitos contando os minutos.
Muitos dizendo de seus horrores.
Pra mim, ele não foi tão mal assim.
Não ignoro as tristezas do mundo e nem as dores que me visitaram nesses 363 dias e algumas horas, mas tirei deles uma grande e real lição: a de como quero permanecer inútil!
Há tempos assisti um vídeo do Padre Fábio de Melo em que ele falava da inutilidade do amor. Pedia a Deus que ele pudesse ter a seu lado pessoas que o quisessem por perto quando ele fosse absolutamente inútil e nada de produtivo lhe restasse mais. Ali se revelariam os que realmente lhe amavam, os que realmente lhe queriam bem.
Eu não atingi esse estágio de inutilidade, mas já fui bem mais útil do que me apresentei este ano.
Sempre optei pela via contrária: por não conseguir cativar (ou não me ver como capaz disso) me fazia extremamente útil, necessária, indispensável.
Antes que o outro pensasse, cá estava eu com a solução.
Antes que me perguntassem, cá estava eu com a resposta.
Limites? Desconhecia.
Vontades próprias?  Não merecia.
E assim me fiz nesses 20 e muitos anos servil, necessária, prestativa, utilitária.
Assim me fiz nesses 20 e muitos anos: absolutamente substituível.
As coisas se prestam a um fim.
As coisas se trocam.
As coisas não questionam e não tem limites ao que fazem dela.
As coisas estão ali, lhe servem e isso basta.
E assim eu me fiz nesses 20 e muitos anos: coisa, útil, simples assim.
No passar deste ano, tive de viver um de meus maiores temores: não pude mais ser tão útil. Nada ou quase nada tinha a oferecer.
Tempo? Quase não tive: as horas de trabalho multiplicaram... o deslocamento ao trabalho aumentou também...
Dinheiro? Quase não tive: as prestações me sufocaram... o aumento prometido, não veio também...
Bom humor? Quase não tive: as preocupações me inundaram... as ansiedades e problemas me acompanharam também...
Ver-se inútil não é fácil... é triste... pesa... dói.
Ver-se inútil é necessário... liberta... seleciona... constrói.
Muitos que me procuravam, não me procuraram mais...
Muitos a quem dei a resposta mesmo antes da pergunta surgir, foram incapazes de ver as dúvidas que eu exalava em minhas reclamações, meus desabafos, meus sofrimentos solitários....
Muitos que eu não esperava, me estenderam os braços e conseguiram entender na distância aparente, os problemas evidentes e, mesmo em silêncio, me ofertaram uma prece, uma ajuda, um tempo, um telefonema, um ouvido.
É isso o que desejo nesse novo ano: Inutilidade.
Àqueles que respondi negativamente nos pedidos de ajuda e que não se lembraram de mim em seus momentos de celebração: que tenham um ano de 2017 tão inútil como o meu!  Isso não é vingança, não pense assim. Quero que você também tenha a chance de me ver além de minha utilidade aparente e que em algum local  resida a saudade do que eu sou e possamos nos reencontrar para celebrar a essência de sermos o que somos e isso bastar.
Àqueles que eu não mais procurei por serem inúteis a mim: que tenham um ano de 2017 mais inútil ainda! Me perdoem a pequenez do sentimento e é com vergonha e pesar que constato a fungibilidade que fiz de vocês, pessoas que são. Não os procurarei mais enquanto forem úteis a mim, espero que a minha inutilidade me revele a essência do que eu não enxerguei em vocês também.
Àqueles que se lembraram e permaneceram comigo: que possamos permanecer inúteis em 2017! Desejo a nós muitas horas de conversas absolutamente infrutíferas, risadas infinitas com lágrimas desperdiçadas gratuitamente, desabafos sinceros e acolhedores por horas e horas entre abraços improdutivos e consolos amorosamente improfícuos.
Um inútil ano novo a todos!




sexta-feira, 14 de outubro de 2016

PORÃO



Todo o chão se abre
No escuro, se acostuma
Às vezes a coragem é como quando a nova lua
Somos a discórdia
E o perdão
E nos esquecemos da cor que tinha o céu, assim
Como a saudade
Ou uma frase perdida
Durma, Medo Meu
Hmmm, não
Às vezes um "não sei"
Janela, madrugada, luz tardia
E o medo nos acorda
Para e bate o coração
Em pura disritmia
O medo amedronta o medo
Vela, madrugada, dia, assim
Como a saudade
Ou uma frase perdida
Durma, Medo Meu
Durma, Medo Meu – O teatro mágico

Está frio... Está frio e silencioso...
O mundo é um grande porão, poeirento, abandonado, escuro, isolado, habitado por fantasmas, pesadelos, sombras de monstros que escalam as paredes e entram pelas janelas.
Eu, criança perdida, olho a tudo com olhar estatelado de quem enxerga, mas não compreende a realidade que a cerca. De caixas vazias surgem monstros, os barulhos são gritos e as tralhas envoltas em sombras alimentam os temores da mente, se projetando em forma de seres que a infância teme e só me convidam a fugir.
O medo pede fuga, distância, socorro. Se teme o que não se conhece, o que não se compreende, o que não se explica e nem se entende, o que não cabe em minha mente limitada e fechada.
Hoje tenho medos. Medos duas naturezas. Medo por não poder saber e medo por saber demais.
Tenho medo desse mundo que não permite a pergunta, que não admite a dúvida, o questionamento, a informação simples, sem crítica, sem opinião, sem achismos ou desachismos, dedos em riste, volumes de voz exaltados, placas e protestos.
Tenho medo por não poder mais me informar antes de opinar, por não encontrar informação. Tenho medo, pois não posso mais procurar saber sem ser colocada em cima de um muro que construíram nessa democracia agressiva do Fla X Flu, que distancia a família, esvazia as mesas de boteco, que se ergue entre os amigos e afasta os abraços e os sorrisos. Tenho medo, pois não encontro mais o “saber” que vem apenas temperado de pimenta, inflamado, cheirando a valores subliminares e entendimentos particulares. Tenho medo dessa ditadura do protesto imediato e da perda do meu direito de querer apenas saber antes de vomitar o que penso. Não pode! Não tá certo!  Pode sim! Tá tudo como deveria estar! Ela não presta, nada que presta vem dela! Ele não presta, nada que presta vem dele!
Tenho medo por ser uma “Poliana” nesse porão frio que o mundo se fez, por ainda querer crer que nada pode ser de todo ruim, ou de todo bom, só por estar sob determinada bandeira, sob determinado nome, sob determinada cor.
Tenho medo de me perder nisso e despertar a ira que acumulo por problemas meus lançando-a na fogueira dos problemas coletivos e inflamando um incêndio que eu não posso controlar. Isso por não poder simplesmente saber... por não ter como saber... por não ter meios de me informar... por ter que me questionar em silêncio e não encontrar quem queira ouvir das dúvidas que tenho sem questionar que camisa uso, que time defendo, em quem votei ou não.
A liberdade defendida é bandeira obrigatória e não se pode questionar... Luta! Protesta! Não lê! Não discute! Assume! Tá contra? Tá a favor? Desce daí menina!
E de cima do meu muro enxergo a tudo chocada e cansada, trazendo em mim ainda o medo de saber demais.
Vejo o mundo à minha volta com os olhos deseducados de quem se julga certa, moral, adequada. Vejo e critico. Classifico, seleciono, opino, etiqueto. Antes de ver, já tenho uma opinião que enquadra o outro e o limita à minha perspectiva de viver, de ver, de ser.
Meu olhar a tudo comporta e conforma nas prateleiras de meus conceitos pré-constituídos do que pode ou não pode ser. Sei demais da vida, sei demais do viver, sei o que cada um deveria ou não estar fazendo e isso me sufoca de uma insatisfação, que na verdade é por talvez não me ver fazendo tudo aquilo que poderia ou deveria fazer.
Estou sozinha nesse porão repleta de conceitos que carrego e que nas sombras da noite se fizeram monstros e me impedem de prosseguir ou de enxergar mais além. Acumulo tralhas em traumas que conformam a realidade à maneira que me ensinaram a enxergar.
Talvez o desejo de querer saber mais antes de opinar venha dessa solidão que as caixas em meu sótão trouxeram: entulhadas me afastam da verdade do outro que se mostra a mim como é e não como eu gostaria de vê-lo. Conceitos que vejo gritando nas falas alheias gritam em minha mente no meu Fla x Flu, no meu muro, na minha ditadura solitária de um viver repleto de preconceitos que, a bem da verdade, nem sei mesmo se são meus, se quis segui-los ou como é que vieram parar aqui.
Medo que me chama à fuga todo dia, espera um minuto. Dorme um pouco. Aquieta. Deixa eu ver o que esse porão esconde. Deixa eu ver o que tem aqui e o eu que posso aproveitar. Nem tudo isso é tralha. Nem tudo é só poeira. Nem tudo está certo, mas nem tudo está errado também. Mas eu tenho o direito de saber e de poder escolher quais dessas caixas e monstros eu preciso e quero defender e carregar.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

COLO

Colo

Mãe, quando é que a gente vira adulto?
Quem me diz que eu já sou adulta?
Então, me fala, quando é eu vou me sentir assim?

Eu olho pra minha data de nascimento e, segundo ela, eu já deveria ser adulta.
Eu olho pro meu cachorro quando chego do trabalho e ele me cumprimenta em busca de ração e seu olhar me diz que eu deveria ser adulta.
Eu olho a pilha de contas na mesa de minha sala, gritando meu nome, roubando meu saldo disponível para saque, pesando em meus bolsos e elas me cobram como se cobraria a um adulto.
Eu deito em meu sofá e ligo o telejornal e engulo notícias mais tristes que meus problemas e o cheiro delas e a minha indiferença me atestam como se eu fosse adulta.

Mas eu sou?

Eu não me vejo assim... apesar das dores nas costas que me chegam quando fico em pé por muito tempo em festas que antes atravessava sem dor, com salto alto e sem ter a menor noção das horas.

Eu não me sinto assim... apesar do garoto ter me chamado de senhora e me olhado com olhar vago quando mencionei a propaganda de um certo chocolate que ia à praia – ainda não consigo acreditar que ele não conhece o Milkbar! Não, não me venha com Lollo! Lollo não vai à praia como dizia o jingle do bom e velho Milkbar.... milkbar...milkbar...

Eu não me percebo assim... apesar de já estar fazendo check-up anualmente e ver o valor do plano de saúde subir e o do seguro de automóvel cair...

Deus... eu tenho seguro de automóvel!
Deus... a gerente do banco acha que eu sou responsável!
Deus... as atendentes de telemarketing me procuram como se eu respondesse por mim!

Mãe, me fala! Quando que passa essa vontade de deitar no seu colo e dormir até o outro dia?
Quando que vai passar essa insegurança toda vez que eu preciso decidir minhas rotas e ainda me pego pensando como seria bom ter a assinatura com o aval de um responsável?
Quando eu vou me sentir como senhora do meu destino com a mesma certeza que eu sentia partir de você quando te via saindo pro trabalho e chegando infinitas horas depois?
Me fala, mãe?

Por hoje, eu só queria deitar no sofá da sua casa e escutar o barulho tranquilo do feijão cozinhando e sua sinfonia de panelas e talheres, enquanto você cantarolava alguma MPB na cozinha.

Por hoje, eu só queria que minha única preocupação fosse o boletim, o namorico no pátio durante o recreio, o caderno de respostas da amiga, o desenho da TV que eu perdi, a festa do final de semana.

Por hoje, eu só queria te ver chegar pela sala ralhando comigo pela irresponsabilidade, pelo para-casa que eu não fiz, pela bagunça do meu quarto, pela minha mochila jogada que não tem perna e por isso não vai sair da sala sozinha.

Me coloca no seu colo mãe, que eu não cresci.
Na verdade, nem sei se algum dia eu vou mesmo crescer.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

TUDO BEM, TAMBÉM!

“Quando ascendes a teu Céu, eu desço ao meu Inferno - mesmo então chamas-me através do abismo intransponível, "Meu Amigo, Meu Companheiro, Meu Camarada", e eu te respondo: "Meu Amigo, Meu Companheiro, Meu Camarada" - porque não gostaria que visses meu Inferno. A chama queimaria teus olhos, e a fumaça encheria tuas narinas. E amo demais meu Inferno para querer que o visites. Prefiro ficar sozinho no Inferno.
Amas a Verdade, e a Beleza, e a Retidão. E eu, por tua causa, digo que é bom e decente amar essas coisas. Mas, no meu coração rio-me de teu amor. Mas não gostaria que visses meu riso. Gostaria de rir sozinho.
Meu Amigo, tu és bom e cauteloso e sábio. Tu és perfeito - e eu também, falo contigo sábia e cautelosamente. E, entretanto, sou louco. Porém
mascaro minha loucura. Prefiro ser louco sozinho: Meu Amigo, tu não és meu Amigo, mas como te farei compreender?
Meu caminho não é o teu caminho.
Contudo juntos marchamos, de mãos dadas.”
Khalil Gibran
- Ei! Como você tá?
- Tô bem e com você?
- ...

Eu? Eu, não.
Eu tô cansada.
Perdida.
Confusa.
Sozinha.
Não tô bem.
Não sei quem estaria.
Não entendo como você também pode estar.
Eu vejo seu rosto com esse sorriso polido, seu abraço frouxo que alisa minhas costas, seu perfume adequado que me abraça as narinas, seu peso correto que me afronta as dimensões que eu não aceito...
Não tô nada bem e como você pode estar?
Eu vejo o mundo em minha volta e não me encontro.
Não me querem aqui e nem em lugar nenhum. Não sentem minha falta e acho que nunca sentiriam... Nem mesmo se... Não! Nem nisso posso pensar, pois meu pensar é pecado, meu cogitar é profano, é tabu, é pra ser escondido nesse entulho que fiz da minha vida, naquele baú onde amontoei as minhas dores e que não posso abrir, pois quem vai me ajudar a arrumar?
Sou mãe e não queria ter sido – não diz isso é pecado!
Sou pai e não queria ter sido – não diz isso é pecado!
Sou mulher e não conheço meu corpo, tenho curiosidades, desejos e não posso confessar – fecha a perna, senta como moça!
Sou homem e escondo o choro e a dor que não posso confessar - vira homem, rapaz!
Sou filha e não gosto dos pais que tenho – deixa de ser ingrata menina!
Sou filho e não gosto dos irmãos que tenho – deixa de ser ingrato menino!
Sou pessoa que pesa mais que o que dizem ser devido e não consigo me conformar à forma que querem me ver – deixa de ser preguiçoso!
Sou pessoa e peso menos do que devia e não consigo ter as curvas com que querem me pegar – para de reclamar atoa!
Ditam-me e dizem-me o que fazer o que não fazer, mas não me ouvem.
Choro sozinho.
Sofro sozinho.
Nunca me ouvem.
Quando ouvem já têm discursos, receitas, propostas, mas não têm ouvidos.
Querem me convencer, me converter, me salvar, mas não têm ouvidos.
Eu não estou bem, não tô nada bem.
Eu me vejo nas manchetes das páginas policiais.
Eu me vejo na dor dos que pedem na rua.
Eu me vejo nos filmes tristes e comerciais de fim de ano.
Eu me vejo nos cachorros que vagam sem dono, sem ração, sem colo, sem nada.
Eu sou pior que eles, pois minha dor não tem justificativa, pois eu tenho tudo, não é?
Eu reclamo de barriga cheia, não é?
Eu sou abençoado, não é?
Não é? NÃO É?
NÃO!
NÃO É!
Eu não tô bem, não to nada bem!
Mas não se preocupe.
Não vou atrapalhar seu dia.
Vou seguir o protocolo que a boa educação determina.
Você vai terminar seu abraço polido e eu já terei armado o meu melhor e mais falso sorriso.
A maquiagem esconde as minhas olheiras e você não saberá de meu choro insone dessa madrugada que, para mim, foi eterna e aterrorizante. Eu vou acenar levemente a cabeça e dizer o que quer ouvir.

- Tudo bem, também!

Pronto, você está livre. Pode ir. Pode se sentar na sua mesa, pode seguir com a sua vida, pode me falar de suas amenidades, suas piadas, pode desligar o telefone, pode sair do whastapp, pode ir.
Eu? Eu vou ficar aqui mesmo. Não tenho para onde ir. Não posso fugir de mim. Não tenho liberdade e nem lugar seguro.
Eu vou me consumir nesse inferno eterno que é viver comigo e nessa dor que você não entende e que não quer entender, porque ela não te pertence.
Vai que tá tudo bem!
Tá tudo ótimo! 
Bom dia para você também!


terça-feira, 23 de agosto de 2016

Calçada

“You've got to learn to hide your sorrow and go on living as before
But good is thinking of tomorrow
Who knows what it may have been stored?
You've got to learn to be much stronger the times your head must rule your heart
You've got to learn from hard experience and lead some to advice
And sometimes bear the price and learn to live with a broken hear”[1]Nina Simone

                Tem uma mulher deitada na calçada.
                Tem uma mulher deitada, morta na calçada.
                Tem uma mulher, mãe, irmã, tia, filha, amiga, servidora, deitada, morta na calçada.
                Os homens passaram de moto e deixaram a mulher ali: morta, deitada da na calçada.
                Os homens deixaram a mulher ali na calçada, mas e o destino que eles criaram, quem vai levar? Os filhos que viraram órfãos, a irmã que perdeu a companheira, a mãe que perdeu o sentido, a amiga que não tem para quem ligar, esses destinos, quem vai levar?
                O que eu digo aos meninos que esperam a mãe de volta? O que eu digo a eles? E eu digo de quem suspeitam? E se eu não disser, será que diminui a dor? Será que muda a realidade da dor? Será que eles não vão unir os telefonemas agressivos, o choro sufocado da mãe, a mudança repentina para casa da avó, como a trilha que leva ao culpado? O que eles vão contar na escola aos colegas? O que vão contar aos filhos deles sobre a história da avó que eles não poderão conhecer?
                O que eu digo à irmã que a recebeu em casa? O que eu digo a ela? Ela sabia do que acontecia e recebeu a mulher em casa, abriu as portas e a vida para que ela tivesse abrigo à violência que deveria estar porta a fora, mas isso não adiantou, e agora? A quem ela deve recorrer? À lei que leva por nome uma mulher mártir deficiente pela deficiência do Estado que acha que pode resolver tudo? Um Estado que só olhou para a mártir e agora só olha para a mulher da calçada por que o sangue e a revolta se tornaram visíveis? A quem ela deve procurar? A quem recorrer? Quem vai consolar?
                O que eu digo à sua mãe que já passou por uma vida de abusos, como todas passaram, e agora tem que encarar a realidade do que é tapado com peneira na figura da filha deitada na calçada? Eu digo que os tempos mudaram? Que progredimos? Que machismo “dá cadeia”? Que a mulher tem mais direitos? Que tem o dia dela? Você teria coragem de dizer isso diante da evidente ineficiência de qualquer prédica, já que a prática cotidiana ainda é assassinar quem não quer seguir mais como você dita? Que “ta certo” dizer que aquela que chora é criança, é infantil, é louca? Que a outra anda com roupa curta é puta, não tem postura de mulher e está pedindo? Diante da rotina que cega os homens dos serviços domésticos por que foram criados assim e tudo bem, isso não é nada, “amanhã é minha vez, querida”? Mas quando vai chegar o amanhã com sua vez de ser julgado, com a sua vez de ser abusado, com a sua vez de ser assassinado?
A mulher está lá na calçada. Ela era mãe, era irmã, era tia, era amiga, mas ela agora é estatística. A estatística se perde no tempo, no esquecimento, nos números, nos prazos, nas prescrições, nas “data vênias”, nos processos, nos “excelentíssimos”, “meretíssimos”, nos carimbos, na frieza do mundo.
Mas nada disso apaga a dor.
Nada disso consola.
Nada disso socorre.
Nada disso resolve.
A mulher ainda está na calçada.
Nada que eu escreva ou diga vai mudar isso, vai diminuir em uma lágrima essa dor.
Mas eu quero que ela saiba que ela não está sozinha na calçada: estamos todas nós.
Silenciaram a mulher, mas a mim ainda não silenciaram e enquanto assim for eu digo, eu choro, eu grito e enlouqueço: NÃO PASSARÃO!


[1] Você tem de aprender a esconder sua tristeza e continuar vivendo como antes/Mas é bom pensar no amanhã/Quem sabe o que pode ter sido guardado?/Você tem de aprender a ser muito mais forte nos tempos em que sua cabeça deve governar o seu coração/Você tem de aprender com as experiências difíceis e levar algumas para conselhos/E às vezes suportar o preço e aprender a viver com o coração partido

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Febre

Febre

Me diagnosticaram, é “pleumonia”! Aguda! Grave mesmo, me corroendo por dentro... Pediram “raoxis” e tudo... 
Mas quando estava no consultório, vi que o “Dotô” também não estava bem. Ele tava com os olhos casados, me olhava com pesar, não por mim, mas pela vida dele mesmo... Ele não tava com muita paciência... Eu com minha “Pleumonia” e ele com intolerância.
Depois que saí de lá, me vi estampado em jornais, em páginas, em fotos, com pessoas que não me conhecem e nem conhecem o “dotô”. Eu vi que xingavam o “dotô”, xingavam muito, xingavam feio! Vi que eles também estavam todos doentes, eu com minha pleumonia, o dotô com intolerância e meus defensores com a ignorância deles.
Eu vi que tinha uma moça que me defendeu de um jeito educado. Sem me chamar de burro e nem chamar o “dotô” de desgraçado, sem ameaça, mas de um jeito leve. Mas vieram os defensores do “dotô”. Disseram que ela era macaca que fingia de branca por pintar o cabelo de loiro e que oprimia os pacientes por usar “estetoscrópio” vermelho. Eu vi nos olhos deles que eles estavam doentes. Tinham os mesmos sintomas do dotô e dos meus defensores. Nossa senhora! Isso passa rápido hein? Tenho que me vacinar!
Doentes que se atracam, se batem, se machucam. Eles não querem se ouvir, só querem falar, gritar, agredir, se impor, calar... Acho que o caso é grave... agudo... não tem “raoxis” que resolva.
No fim das contas, minha “pleumonia” é o mais leve nisso tudo. Eu só sinto uma febre que acaba com novalgina e a tosse passa com chá, mas essa ignorância e essa intolerância não passam.
Elas corroem a gente por dentro onde nenhum “raoxis” consegue ver. Não gera tosse, nem febre que termômetro consiga perceber. Mas queima, por dentro, por fora, por todo lado. Ela expulsa pra fora da gente o lixo que a gente carrega dentro. Ela faz gente virar bicho. Faz eu deixar de ver o outro como alguém além do ponto de divergência entre a gente. Eu enxergo o que discordo e pronto.
É grave essa doença porque não tem remédio nenhum que dê jeito na gente, nada que se possa tomar de fora pra acalmar esse fogo que queima por dentro... O remédio é de dentro também, mas ninguém quer tomar, por que ninguém quer ceder, tem que ganhar... ganhar o quê eu não sei, por que no fim das contas sai todo mundo perdendo. Perde amigo, perde emprego, perde espaço e depois pede pra fazer retratação, pra remendar o que disse, pra dizer que não era bem assim, que falou sem pensar, que colocaram mais peso, que era só uma piada, que não linchou ninguém, que é só internet, que tem direito de se expressar, que o mundo tá muito chato, que tem muito mimimi....
No fim das contas, eu, a minha “pleumonia”, a intolerância do “dotô” e a defesa da outra “dotora” ficamos tão pequenos nesse mar de agressões que eu nem tenho mais pra onde correr ou como me esconder.
Quem bate no “dotô” fala que apanha e fala em meu nome sem me perguntar se eu quero defesa, sem ver que é tão ignorante como o dotô que riu da minha “pleumonia”.
Quem bate na “dotora” fala que apanha e que o mundo anda muito chato, ignorando os sintomas de racismo galopante que estão acabando com eles mesmos, contaminando seus filhos e quem mais estiver passando próximo...
Sei não, viu! Eu tô esperando o resultado dos meus exames e tô com medo. Medo desse mundo todo que bate sem perguntar, que opina nem se questionar, que acha que agredir é se posicionar, que acha que tem crachá de moralidade e que isso o isenta em qualquer atitude, já que eles podem e não só podem como devem defender o que acreditam... Mas nem sabem no que acreditam, ou mesmo se acreditam....

Só sei que está todo mundo doente, tá todo mundo com uma tosse na garganta que incomoda e que se não vigiada sai na forma de escarro na cara de quem tá passando do seu lado. Tá todo mundo com uma febre que queima o peito e tira o sentimento de humanidade, que agride, humilha o outro e não se importa com o ser humano que tem que continuar vivendo apesar do erro que fez ou da opinião que eu não concordo. Tá todo mundo cansado, de peito cheio, testa quente, todos com suas “pleumonias”. Mas ninguém tem coragem de abrir seu envelope e conferir o próprio “raôxis, porque ninguém quer ver onde tá errado, onde tá o sintoma, onde tem que melhorar. Só querem cuspir, tossir, se inflamar. Ninguém quer se ouvir. Tá todo mundo doente, mas ninguém quer se curar.

terça-feira, 19 de julho de 2016

A culpa é toda nossa!

A culpa é toda nossa!

Querido “çer umano” que estacionou seu HB20 atrás da minha moto ontem naquele bairro da Zona Sul, em frente ao prédio da minha terapeuta.
Querido “çer umano” que tinha um adesivo “A culpa não é minha, eu votei no Aécio” pregado em seu carro.
Querido “çer umano” que, ao manobrar seu carro caro, derrubou minha moto barata, quebrou a manete de freio, entortou meu retrovisor e arranhou a lataria, além de deixá-la um pouco aberta.
Querido “çer umano” que levantou a minha moto e a deixou em pé como se nada tivesse acontecido e foi pra sua casa com a consciência serena já que você votou no Aécio.
Querido “çer umano”, deixa eu te falar uma coisa: A CULPA É SUA! Não por que votou nesse cara aí. Não tô nem aí em quem você votou. Seu voto é sua manifestação de liberdade democrática e eu defendo a democracia. Se você quis violar o segredo do seu voto com esse adesivo no seu carro sem arranhões, com freio adequado, retrovisores no lugar certo e lataria em perfeito estado isso é problema seu! Não me importo nem um pouco com isso!
Mas eu me importo com a sua hipocrisia, ainda mais quando ela vai afetar diretamente no meu bolso!
Você é um político corrupto e ladrão!
É sim!
Só que você não foi eleito por ninguém, ninguém votou em você!
Você é político porque faz “politicagem”. Anda por aí como probo, justo e sem culpa nenhuma nessa bagunça que está o país, enquanto derruba a minha moto e sai como se nada tivesse acontecido.
Você é corrupto por que não assumiu a responsabilidade por um ato que fez e que deveria arcar com o prejuízo. Estava com pressa? Deixasse um bilhete no visor da moto! Avisasse ao rapaz da padaria de frente que viu sua ação e me contou! Sim, você foi visto e foi alvo de delação premiada! O problema é que você não vai muito ali, pelo que parece, então não vou poder te conduzir coercitivamente para a delegacia e fazê-lo pagar pelo que fez.
Você é ladrão, pois roubou diretamente de mim! Você sabe da minha condição financeira? Sabe quanto custa a manete de freio? Sabe quanto custa consertar a lataria da minha moto? Mas eu sei que o valor da minha moto não paga nem o valor de entrada desse seu HB20 e aposto como você deve ter até seguro para danos a terceiros!
Querido “çer umano”, fosse eu a arranhar a traseira desse seu carro ou a esbarrar nesse seu retrovisor e aposto como você desceria enfurecido a me xingar sem nem esperar que eu arcasse com o prejuízo, por que eu iria arcar sim!
Saiba, querido “çer umano”, que eu também sou uma política corrupta e ladra, pois também tenho os meus desvios que não queria mais ter. Também me aproprio do que não é meu. Também tenho os meus “jeitinhos” e sei que isso é errado.
Mas fique sabendo, querido “çer umano”, que eu tenho ao menos consciência disso e sei, ao menos em alguma medida, que A CULPA TAMBÉM É MINHA, não por quem eu votei ou deixei de votar, mas por ser quem eu ainda sou e não me eximo dela! Mas pelo menos não coloco na testa, no carro ou na moto um adesivo de moralidade que eu não possuo. Assumo a minha responsabilidade e reconheço quem sou.
E antes que você tente virar isso para os polos coxinha x mortadela, golpe x impeachment, direita x esquerda, querido “çer umano”, o que me indignou não foi seu voto, seu posicionamento político, a coxinha ou a mortadela de qualquer um. Repito, não estou nem aí para isso! Vote em quem quiser! Defenda democraticamente o que quiser! Mas não se exima da culpa que também é sua!
Seja honesto ou se esforce pra ser! Não “tire o seu da reta” quando lhe convém. Com esse prejuízo que me deu, você desviou verba do meu “SUS”, da minha “educação”, do meu “PIB”, por que eu tenho que arcar com um prejuízo que eu não produzi e dar as minhas pedaladas em meu orçamento para cobrir esse dano seu!
E não pense que eu estou “tirando o meu da reta”! Saiba que eu assumo a corrupção que eu pratico, justamente para não fazê-la mais! Justamente por que ela me incomoda! Justamente por que sei que não posso me eximir dessa culpa que também é minha.
Então, querido “çer umano”, de duas uma: ou tire esse adesivo hipócrita e continue derrubando motos por aí e fugindo de seus compromissos com o próximo sabendo que a culpa é sua, ou continue com seu adesivo, mas pare de dar desculpas e seja verdadeiramente honesto!

Não me importo com o que vai escolher, mas escolha ser verdadeiro com o que de fato é ou com o ideal do quer ser. Mas seja, querido “çer umano”, ao menos humano. Ou tente ser!